sexta-feira, 26 de junho de 2009

dançar outra vez

É este o título de uma crónica de Agualusa de que muito gosto. Gosto também, e muito, do Agualusa e dos seus livros.

Tenho essa crónica, página arrancada da revista Pública de há quase 10 anos atrás, colada na parede do meu quarto na casa dos meus pais.


Hoje, lembrei-me dela e tentei encontrá-la na net, mas só consegui encontrar uma versão resumida. Fica aqui a versão resumida e quando voltar a casa dos meus pais deixo-a aqui completa.


Bom fim-de-semana!


"Sempre que alguma coisa me corre mal, ou então, como acontece com frequência nos dias escuros, sempre que me acho mais céptico em relação à humanidade, lembro-me do estranho objecto que descobri ao visitar um centro de recuperação de mutilados, em Viana, pequena cidade nos arredores de Luanda.
Pensei primeiro que fosse uma obra de arte moderna, confusa colagem de ferros retorcidos que vagamente, muito vagamente, deixava adivinhar a forma de uma perna humana. Um enfermeiro seguiu o meu olhar: «É uma prótese», explicou, «ou melhor, foi uma prótese». Contou-me que alguns meses antes tinha aparecido ali um velho camponês. Caminhara desde uma remota aldeia do Norte usando em lugar da perna direita o extraordinário aparelho. A perna perdera-a no princípio dos anos sessenta, quase quatro décadas antes, ao pisar uma mina. Socorrido por soldados portugueses, recebera uma prótese de alumínio e regressara a casa. A prótese quebrara-se várias vezes e ele mesmo a consertara, pacientemente, com arame farpado, cintas de obuses, ferro velho, enfim, o que estivesse mais à mão, até o fantástico estorvo atingir os vinte e cinco quilos de peso.
Quando no centro de recuperação de mutilados lhe entregaram a nova prótese, o homem (contou-me o enfermeiro) sorrira radiante: «Agora», dissera baixinho, como se revelasse um segredo, «posso dançar outra vez».
É a isto que se chama optimismo. Nos nossos dias existe por vezes a tendência de olhar para os optimistas como pessoas um pouco aéreas, meio loucas, gente com a cabeça na lua. «Não sou optimista», repetem todos os pessimistas, «sou realista». Acho que é o contrário. Os optimistas sofrem menos com os percalços da vida porque só sofrem com os percalços e não com a eventualidade deles — ou seja, mantêm-se mais próximos da realidade. Os pessimistas preocupam-se com o pior que possa acontecer, ainda que nunca aconteça, enquanto os optimistas exultam com o que de bom irá acontecer — mesmo que não aconteça. O saldo, convenhamos, é sempre a seu favor.
A prótese que vi em Viana talvez seja realmente uma obra de arte. É horrível. Mas depois de conhecer a história dela achei-a belíssima. Tão feia, meu Deus, tão bonita. Deviam mostrá-la, nos museus, aos pessimistas."
Condensado de «Pública» (9 de Janeiro de 2000), Lisboa, Portugal.

2 comentários:

Moura Aveirense 27 de junho de 2009 às 19:43  

Texto muito bom!

Xu 27 de junho de 2009 às 22:44  

clap clap clap ... gostei imenso ... mt bom!

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