quarta-feira, 1 de junho de 2011

cão como nós

"Dois dias depois o cão estava de volta. Veio amuado, não ligava a ninguém.
- O cão está zangado, não fala connosco, comentou um dos meus filhos.
Era verdade. Durante uns dias o cão não falou. Digo bem: não falou. A fala é muito complicada. Está antes da palavra, como a poesia. E aquele cão falava. Falava com os seus vários modos de silêncio, falava com os olhos, falava, até com o rabo, falava com o andar, com as inclinações da cabeça, com o levantar ou baixar as orelhas. Daquela vez calou-se por completo. Não falou com nenhum dos seus sinais. Nem sequer com o seu silêncio.


- Como a mãe, diria depois a minha filha. A mãe quando se zanga também não fala.
- Ou como o pai, acrescentaria mais tarde. O pai fica assim quando está preocupado. Ou como eu, ou como os manos. É de família. Ou berramos muito ou então calamo-nos.
Assim ele estava. Como nós."

in Cão Como Nós [Manuel Alegre]

Mais um livro que não chegou à mesinha de cabeceira e foi devorado no comboio. Só agora, depois de lido ele irá para lá repousar. Uma vez estando lá, de vez em quando, vou abri-lo e reler esta ou aquela passagem. 
Lamento que tantos anos tenham passado até que eu tenha chegado a este livro. É uma beleza, um mimo daqueles que se trazem no bolso embrulhados num bocadinho de papel colorido, como se fosse uma concha apanhada na praia, um seixo rolado, uma missanga colorida que encontrámos quando nos baixámos para apanhar os óculos que nos caíram. Lê-se de um trago e deixa um quentinho no coração.

1 comentários:

Moura Aveirense 1 de junho de 2011 às 18:15  

Gostei imenso deste livro. Fartei-me de chorar no final.

  © Blogger templates 'oplanetadapiquenina' by oplanetadapiquenina 2009

Back to TOP